A espiritualidade que queremos

[Nota pessoal: Escrevi essas linhas originalmente como um ensaio privado, antes de sair de um período de anos em silêncio nas redes sociais e voltar a ter uma presença no instagram e blog neste ano de 2024. Resolvi tornar essas notas públicas porque podem acrescentar ao diálogo que vejo acontecendo hoje, que considero muito produtivo, sobre a revisão dos excessos trazidos pela abertura espiritual que vivemos nos últimos anos].

Para onde caminha a espiritualidade?

Já fui bastante ativa por aqui. Mas assim como acontece na vida real, perco a vontade de falar quando há vozes demais no ambiente competindo para serem ouvidas. E a internet hoje é esse ambiente. Um “lugar” onde habita um exército de pessoas bonitas, ricas, elegantes, interessantes, inteligentes, espiritualizadas, vencedoras (?), cheirosas e sábias, quiçá iluminadas. Todas com bons conselhos e receitas de felicidade para compartilhar, muitas vezes estampadas em frases lacradoras e acompanhadas de etiquetas com preços exorbitantes.

Veja-se, por exemplo, uma moça jovem, bonita e rica que cobra o salário mensal de um trabalhador para compartilhar faíscas de sua iluminação em retiros luxuosos, onde as pessoas vão para ouvir que são elas mesmas que criam e resolvem os seus problemas. Que só não vivem numa mansão luxuosa nem viajam o mundo como ela porque não sabem vibrar na frequencia certa da “prosperidade” nem “manifestar” a realidade que desejam. Mas se forem ao retiro, aí sim a sua vida vai mudar. Se não mudar, bem, continua sendo culpa da sua baixa vibração.

Eu fico imaginando as pessoas incautas, carentes de atenção, amor, e até mesmo conhecimento, que caem nessas armadilhas do capitalismo digital new age. Muitas se aproximam dessas falsas promessas com um deslumbramento digno de fã clube.

Eu sou do tempo em que as ciências humanas criticavam o fanatismo cego das igrejas, e com total razão. Mas hoje penso que comparativamente à espiritualidade digital new age, naqueles espaços comunitários físicos as pessoas mais crédulas e vulneráveis estavam relativamente mais seguras.

É que a imaterialidade dos conselhos iluminados do capitalismo digital new age dá aos seus proponentes a possibilidade de se eximirem de qualquer responsabilidade pelo que dizem e propõem. Quando existe um convívio, ou ao menos uma proximidade entre as pessoas envolvidas, a relação de responsabilidade se torna muito mais tangível – e o freio aos absurdos também.

A internet está uma fábrica de loucura. Parece um delírio coletivo, uma nuvem fantasiosa que tomou proporções inacreditáveis. Até mesmo trabalhos de real valor flertam com essa nova ordem estranha, talvez por pressões algorítmicas, avizinhando-se a trabalhos mais duvidosos, ou pelo menos dialogando com eles. Todos temos de ter cautela pois existe um sistema que nos premia com a “glória do mundo” na medida em que nos tornamos agentes dessa engrenagem ilusória.

Num cenário assim, ruidoso e ditado pela agenda das big techs, começa a ficar difícil separar o joio do trigo, pois fica tudo nebulosamente parecido. Até mesmo a espontaneidade pode estar sendo calculada.

O teste do tempo clareia bastante coisa. Não que apenas os antigos mereçam ser ouvidos – idade não é garantia de qualidade – mas sempre que nos depararmos com algum tipo de conselho espiritual é preciso escutá-lo com critério e sentir para onde ele nos leva.

É preciso afiar o discernimento mais do que nunca, e ser aguerrido na defesa da própria integridade mesmo quando ela destoa do consenso de grupo. Escutar sempre, em primeiro lugar, a voz do próprio coração, tendo como guia a própria realidade vivida. Nenhum guru pode saber melhor sobre a sua realidade – e sobre o que funciona ou não para você – do que você mesmo.

Sempre que alguém oferecer fórmulas mágicas e conselhos muito universais, em princípio, desconfie. Não somos bolos e não temos receitas prontas. É muito mais fácil distribuir conselhos massificados do que ouvir os caminhos complexos da dor real das pessoas. Se encontrar alguém que esteja disposto a te ouvir antes de sair ditando o que fazer, isto é um bom sinal.

É certo que a internet potencializa as boas trocas e os aprendizados. Mas ela também pode criar um reino de fantasia que entretém e vende mas não tem substância, podendo até causar estrago pelo caminho.

Ainda assim, nós que amamos a espiritualidade não precisamos jogar fora o bebê junto com a água da banheira. O que cai bem no cenário atual é ter um olhar crítico, que separa a “espuma” da espiritualidade real. Essa última leva tempo para desenvolver, requer atenção e trabalho interno árduo.

Espiritualidade é um caminho que incentiva o alinhamento das ações cotidianas e mundanas com valores mais elevados. É a decisão de abrir mão do bicho estranho que nos tornamos quando vivemos de forma egoísta, sem freio aos apetites do nosso eu inferior.

A espiritualidade nos convida de forma tácita, amorosa e pela força do exemplo a sermos mais lúcidos e “mansos” (no sentido do Sermão da Montanha) em nossa vida cotidiana: em nosso casamento, família, vizinhanca, país, planeta e galáxia.

Queremos uma espiritualidade assim, que sirva ao crescimento real do indivíduo como pessoa orgânica e cidadã do universo. Que não seja um compêndio de miragens bonitas para encher o ego e o bolso de alguém, mas um alicerce existencial sólido que ajuda a construir relações de paz.

Essa é a espiritualidade que queremos cultivar e ver crescer.


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